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REVISTA MORDER
ano 1, número 1

temer o temer

junho de 2016
carta-convite e contato

LACHESIS MUTA MUTA
Gabriela Starling
EU GRITO
Rosa Luz
Microconto do Golpe
Sara Freire
Le Temer
Silvie Eidam
Sobre as corporalidades para além dos modelos: vivos?!
Luisa Günther
Entre o passado e presente: Antígona e a necessidade de resistir
Bárbara Figueira
Trato, Tratar, Tradado, Tratando
Clarissa Paiva
agora y sempre
tatiana nascimento dos santos
Bruxaria
Mayra Revolutionaif
De uma ilha a outra
Clarice Gonçalves
início
carta-convite e contato
REVISTA MORDER

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comissão editorial
Silvie Eidam
Gabriela Starling
Tai (desenho)

a “morder” nasceu da vontade de lançar uma revista online, algo lúdico e artístico feito por mulheres artistas. em tempos como esse, faz ainda mais sentido criar formas de resistência feminina. a intenção é de criar lugares de troca e debate, espaços de fala para nós, muitas vezes caladas... além disso, queríamos estimular a discussão interna sobre as produções artísticas de brasília e, quem sabe, de outros lugares. por falta desses debates, percebemos, ficamos muito à mercê das opiniões e avaliações dos galeristas e colecionadores homens, o que nem sempre é interessante. vamos retomar o que é nosso também e parar de deixar falarem por nós!

a revista “morder” foi batizada pelo i ching. o hexagrama 21 fala acerca de uma agressividade positiva a fim de conquistar e reconquistar espaços. morder se refere também a uma boca que não só fala, mas que luta e se defende.

cada edição terá um tema sobre o qual as convidadas podem escrever ou criar, de outras formas, algum artigo. vídeos, imagens e som são super bem-vindos. cada mulher pode participar com mais de um artigo, claro.

não precisa ser algo acadêmico... este será também um espaço em que cada mulher escolhe a melhor maneira para expressar suas ideias sobre um tema.

vamos a la lucha conosco?

início
LACHESIS MUTA MUTA
Gabriela Starling

Gabriela Starling é artista plástica e educadora, graduada em artes plásticas pela universidade de Brasília e mestre em poéticas contemporâneas pela mesma instituição. A pintura e o desenho estão entre seus principais interesses de pesquisa, estendendo-se para a cor e suas relações, os suportes têxteis e a materialidade das tintas e pigmentos.

Principais exposições coletivas: 20 — pintura e pictorialidade em Brasília, Espaço Cultural Marcantônio Vilaça, 2014. Sete mais, Casa da Cultura da América Latina – Cal, 2014. Mirada desobediente — do infantil ao pueril, Centro Cultural Renato Russo, 2011. Todas em Brasília – DF.

Lachesis Muta Muta, 2016. Costura e tinta acrílica e pva sobre tecidos diversos.

Lachesis Muta Muta (detalhe).

Lachesis Muta Muta (detalhe).

Estes são os primeiros registros, em uma câmera caseira, de uma obra ainda em construção.

Será chamada LACHESIS MUTA MUTA.

Peles: tecidos, escamas. Fosco e brilhante.

Manchas: coagulação, absorção da matéria acuosa. Vermelho, roxo, azul amarelo.

Traços: a linha que se desenha, função que se designa. Intelecto, razão.

Corte: separação, fragmentação, desordem.

Costura: reordenação, crescimento, construção. Estrutura. Trabalho afetivo e amoroso sobre todas as partes que não se encaixam e que sofrem pela separação.

* * *

LACHESIS MUTA é o nome científico da cobra Surucucu. Pertence à subordem das serpentes, que se caracterizam pela capacidade de um grande recuo da mandíbula para baixo, possibilitando uma abertura da boca e, consequentemente, a capacidade de engolir presas maiores. MORDER.

A Lachesis, como todas as serpentes, cresce continuamente ao longo da vida. Como a camada externa das escamas é rígida, devido à queratina, elas precisam trocar de pele periodicamente para poderem crescer. Serpentes jovens podem trocar de pele até 10 vezes ao ano, e adultas de 1 a 4 vezes ao ano. MUDANÇA; CICLOS; DESENVOLVIMENTO.

A pele antiga começa então a se soltar, e por baixo da camada velha começa a nascer uma camada nova, um pouco maior. Quando a pele nova está inteiramente formada, a casca torna-se esbranquiçada e opaca, ligeiramente enrugada. A serpente então procura esfregar o focinho em diversas superfícies para que a pele antiga possa se desprender e soltar, primeiramente pela cabeça, seguindo pelo corpo, que segue se desenrolando.

Durante esse período, a serpente fica vulnerável, tem a visão prejudicada, não se alimenta e movimenta-se pouquíssimo. TEMPO DE REESTRUTURAÇÃO.

* * *

O nome LACHESIS faz referência a uma das três moiras da mitologia grega, responsáveis por fiar, tecer e cortar o fio da vida. LACHESIS em grego significa “sortear”, e esta é a moira que puxa e enrola o fio, sorteando as atribuições que cada umx irá receber na vida. Não só o destino da humanidade, mas também das deusas e deuses, estava nas mãos das três moiras. Cloto, responsável pelos partos e nascimentos, segura o fuso e tece. Lachesis sorteia os destinos, puxando e enrolando o fio. Átropos corta o fio da vida, determinando seu fim.

* * *

MUTA vem do latim e se refere a mudez. Lachesis Muta, ou seja, muda, pelo fato da Surucucu vibrar sua cauda como a cascavel, sem, no entanto, produzir som algum. Silêncio. A voz que pode ser silenciosa, mas jamais deixará de ser ouvida. Poder oculto, profundo, abstrato e sinuoso. Poder de todos os sentidos. Sensibilidade para ouvir do chão.

* * *

LACHESIS MUTUS é um medicamento homeopático, formulado a partir da diluição do veneno da cobra Surucucu. A tintura mãe é preparada a partir do veneno que contém substâncias na origem de perturbações de coagulação. Ingerindo-o, a personalidade Lachesis cura-se do desequilíbrio. Lembra-nos da máxima: a diferença entre o remédio e o veneno é o contexto e a quantidade... Princípio da semelhança, SIMILA SIMILIBUS CURANTUR, semelhante cura semelhante.

Para pacientes que alternam estados de mudez e loquacidade. Sensualidade, prazer, volúpia. Ciúmes, inveja, delírios. Medo de enlouquecer, medo da morte. Sensação de asfixia constante. Sangue menstrual escuro. Tonturas e desmaios. Palpitações. Períodos menstruais dolorosos, cólicas, mudanças de humor. Sintomas da menopausa. Sonhos terríveis. Sonhos com cobras ou pessoas mortas. Cianose: pele apresenta tonalidade azul-arroxeada. Desejo por álcool, vinho, cerveja, uísque, ostras, picles, leite, café, amido.

É mais comumente receitado para mulheres. Em equilíbrio, uma personalidade que se defende quando necessário, gosta de liberdade e de estar ao ar livre e possui uma sexualidade intensa e forte.

* * *

Lachesis Muta Muta apresenta-se. Do lado esquerdo, uma maçã. Do seu lado direito, um espelho. Ela protege as mulheres de projeções terríveis que recaem sobre elas desde o início dos tempos. Posiciona o espelho da verdade diante de Michel Temer. Ele vê refletido o próprio rosto (que é estranhamente reptiliano, devemos lembrar) e seu próprio nome. TEMER.

TEMER = sentir medo

Lachesis Muta Muta pede-nos que não nos sintamos ameaçadas pelo MEDO, pelo retrocesso na política e possível perda de direitos, que com tanta luta conseguimos garantir. Pede-nos com muita calma e tranquilidade que continuemos em frente, unidas, FORTES, seguras. Conquistando e garantindo espaços, comunidades, ambientes de luta e de política. Que utilizemos nossa criatividade para curar e crescer, produzindo com nosso coração o que de melhor sabemos fazer. E que possamos amar sem medo aquelas e aqueles que estão do nosso lado, sob sua proteção. Lachesis Muta me diz com sua voz silenciosa que esse momento sombrio é apenas nuvem passageira, que vem para testar nossa força, nossa capacidade de luta, nosso poder de união.

início
EU GRITO
Rosa Luz

pronta pra guerrylha, cartomante.

>> facebook / rosaluz

EU GRITO
de dor
de ódio
de amor
de tesão
do goso
da morte
das mortes
do tédio
da vida
TRAVESTI
mulher artista
mulher da vida
mulher malandra
mulher vivida
desvivida
morta
TIVE SORTE HOJE
chega em casa
uma da manhã
e não morre hoje
MAIS UM DIA
mulher vivida
mulher artista resista
NO MEIO DE TUDO UM GOLPE
mais que isso
desrespeito cá vida.
Preta travesti de peito e pau empoderada é cortada pelos cortes e invisibilidades do governo
MAIS O QUE CORTA MESMO É O ESTEREÓTIPO DA GILETE NA GARGANTA
e com minha voz, te corto! 
kortamos! 
kortaram! 
kortaremos!
COSMOVISÃO AFRICANA!
o passado que reflete
no presente que projeta
o futuro que 
VIVENDO NO HOJE
estratégias de guerrylha
descolonizadas
te convido ao quilombo de afetos!
ALÁFIA
minas
negras
pretas
pobres 
travestis
marginalizadas
homens livres
mulheres livres
pessoas livres
O CONDICIONAMENTO HOJE NÃO ME COLA
só se dizer feminista já não basta
há correntes que me acorrentam
e se você é branca
saiba do seu privilégio!
coloque-se no seu devido lugar!
SÍNDROME DE PRINCESA IZABEL CAI CEDO
ameaças concretas ouvidas e vividas
romantizadas por quem não vive e não sente
o peso de ser tratada como lixo
chega a ser até elogio
NADA COMO O RESPEITO
que entende
escuta
aprende
protagoniza
e deixa protagonizar
protagonizarem.
Porque no fim não é questão de deixar!
NOSSA VIVÊNCIA É NOSSA
e se um governo que te quer morta não respeita isso
e se indivíduos privilegiados não respeitam isso
QUE VENHA A GUERRILHA!
'aki não tem princesa,
TEM REBELDE COM ESCOPETA'
e longe da academia, descolonizada, pronta pra guerrilha, faço minha arte!
E PARA AS, ES e OS ARTISTAS:
assim como se afirmar feminista hoje não te isenta de ser transfóbica
racista
elitista
SE AFIRMAR ARTISTA HOJE NÃO TE ISENTA DE SER
coxinha
segregacionista
e vários outros istas
que não te faz desconstruído-a-e
PRA
QUEM VOCÊ FALA?
PRA
QUÊ VOCÊ FALA?
repito
pronta pra guerrylha
repito
e deixo um salve pra as minhas e para os meus!
KEM É É!

início
Microconto do Golpe
Sara Freire

Sara Freire é escritora e ativista, graduada em Ciência Politica e com mestrado em Literatura. Seu saturno em libra impede — há diversas rotações do ego em torno de seu sol também libriano — que ela finalize seu primeiro romance sobre a crise da masculinidade. Enquanto isso, ela se dedica, tricotando, a um dia aprender a tocar sanfona. Sara também é cofunfadora do Eu Corpo.existo, coletivo feminista do facebook, e uma das diretoras da IMBRADIVA e.V. — Iniciativa de Mulheres Brasileiras contra Discriminação e Violência — em Frankfurt am Main.

Ela disse no, non, nein, não, não, não, não, não.
Ela mostrou os dentes. Gritou. Denunciou.
Mas os estupradores da democracia continuam impunes.

início
Le Temer
Silvie Eidam

batizada em homenagem a duas aves. pisciana com ascendente em aquário e lua em touro, filha de oxum ypondá, com o dosha dominante vata, um pouco pita e quase nada de kapha. pinta, fotografa, desenha, instala, filma e as vezes escreve.

>> silvieeidam

O Temer — Arcano Maior — 22

Palavras Chaves:
Traição
Ganância
Vaidade
Retrocesso
Perigo

Expressões Chaves:
Ser traídx
Ser decepcionadx por pessoas próximas
Sofrer violência, assaltos e ataques.
Sentir se em um pesadelo sem conseguir acordar.
Vitória do antigo sobre o novo.
Se tá ruim, ainda pode piorar.

Fatores Sentimentais:
Saia da sua relação atual e denuncia todos os abusos.

Fatores Materiais:
Proteja seus bens e não conta para ninguém. Pois, bens materiais serão só para alguns.

Fatores Mentais:
Medite bastante e presta atenção na sua própria sombra. Trabalha com e não contra ela. Já viu o que acontece quando alguém não se trabalha.

Significado da Carta Le Temer:
O Temer é uma das cartas menos ambíguas dos arcanos maiores, pois é uma carta com conotações exclusivamente negativas. Ele anuncia tempos difíceis, e prepara o e a consulente ao confronto com a sua sombra. Muitas vezes, ele aparece em resposta a perguntas sobre o futuro profissional. Especialmente para mulheres, essa carta anuncia retrocessos, falta de respeito e reconhecimento. Alguém no seu trabalho, provavelmente seu chefe ou parceiro, pode estar tramando algum complô contra você, ou incentivar intrigas que serão prejudiciais. Associada a perguntas sobre relacionamentos amorosos, essa carta alerta para violências de vários tipos e te convida a repensar sua relação atual. Ela avisa que crises de ciúmes, ataques de inseguranças, agressões e controle piorarão e que não deverá mais aceitá-las.

Em carta Presente, o Temer chama atenção para alguma situação que você não esteja vendo claramente ou que você esteja subestimando. Muitas vezes, não enxergamos o perigo até ser tarde demais. Se essa carta saiu para você neste momento, pode significar que chegou a hora de começar a impor limites, de parar de se calar e aceitar abusos de terceiros. O Temer também pode aparecer na forma de algum homem que você conhece e que esteja tentando te enganar e ou prejudicar. Toma cuidado!

Como carta do Futuro, ela te avisa que ainda pode piorar; que a tempestade ainda não acabou e que é para você ficar muito atentx. Muitas vezes, ela aponta para conteúdos psicológicos reprimidos seus que podem aparecer com uma força violenta se não trabalhar essas questões em si.

Se for mulher e essa carta saiu para você, ela pode te avisar para ter cuidado ao andar na rua ou em qualquer lugar público. O Temer pode implicar perigos de cunho misógino, alguém querendo te dar uma rasteira, traição e/ou outras violências de gênero.

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Sobre as corporalidades para além dos modelos: vivos?!
Luisa Günther

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Entre o passado e presente: Antígona e a necessidade de resistir
Bárbara Figueira

Bárbara Figueira é atriz, diretora de teatro, integrante do Coletivo Calcanhar de Aquiles, professora da Rede Pública de Ensino e mestranda em Teoria Literária pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília. Pesquisa as relações entre Teatro e Política, com foco na Tragédia Grega.

"O povo fala. Por mais que os tiranos sejam afeitos a um povo mudo, o povo sempre fala. Fala sussurrando, amedrontado, à meia luz, mas fala". Passados mais de dois milênios, as palavras de Sófocles ainda soam fatais. Estas são pronunciadas por Antígona, princesa de Tebas, fruto do incesto de Édipo, último fio da linhagem amaldiçoada dos Labdácidas e personagem-título de uma tragédia que não cessa de nos assombrar.

Especula-se que Antígona teria sido apresentada em 441 ou 440 a.C. A história se passa na cidade de Tebas. O prólogo é a batalha dos sucessores do trono de Édipo, Polinices e Etéocles, no frontispício do palácio real. Etéocles, não tendo honrado sua promessa de revezamento anual do trono com seu irmão Polinices, sofre deste uma tentativa de sublevação, através da expedição armada que ficou conhecida como "Sete contra Tebas" [1]. O nome da expedição é alusivo às sete portas que guarneciam a cidade, e em cada uma delas houve uma batalha diferente entre os chefes de cada exército. Na luta pelo poder, a batalha da sétima porta foi travada num combate homem a homem, entre Polinices e Etéocles. Os irmãos matam-se. É erigido à coroa, Creonte, tio de ambos os falecidos. Este decide pelo enterro com honrarias a Etéocles, por morrer em defesa de Tebas e, por meio de um decreto proíbe qualquer tebano de sepultar ou chorar o corpo de Polinices, sendo a morte a pena para o descumprimento de sua ordem. Antígona transgride a lei e enterra o corpo de seu irmão, afirmando tal direito como inalienável.

A proibição de Creonte e a desobediência de Antígona desencadeiam uma densa trama, representada por vínculos e tensões entre a família e a cidade, o plano divino e o plano humano, a tirania e a democracia, o público e o privado, a lei do Estado e as leis divinas, o amor, a morte e a liberdade. Antígona, além de converter-se em um símbolo da liberdade de se agir contra o Estado, é um dos mais belos questionamentos acerca dos limites do poder. Porém, a despeito desta afirmação e dos séculos de interesse das ciências humanas pela tragédia, não é supérfluo interrogar: seriam tais criações ainda capazes de fazer emergir questionamentos pertinentes no contexto do século XXI?

A partir dessas motivações, em 2013 o Coletivo Calcanhar de Aquiles junto ao Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, iniciou o processo de montagem da terceira parte da Trilogia Tebana, com o intuito de investigar o campo da prática teatral através do diálogo com a prática filosófica, motivando o pensamento em torno da produção artística associada ao investimento teórico e ao engajamento sociopolítico. Na atualização do debate expresso em Antígona, o Coletivo optou pelo desenvolvimento de reflexões sobre nosso passado recente, situando o enredo da peça no período da ditadura militar brasileira, a fim apontar a insistência do passado ditatorial civil-militar instaurado em 1964.

Importar reafirmar que o Brasil foi sonegado em seu processo de formação identitária, sendo-nos negada a possibilidade de construção de uma narrativa plural, colocando-nos como legatários de uma historiografia oficiosa que confiscou o direito à verdade e à memória. Antígona foi fundada sob a premissa de que o dever de memória não reside somente na reparação jurídica, mas estende-se à ação de publicizar o ocorrido, dando voz às vítimas e testemunhas que vivenciaram processos ditatoriais. Dessa forma, o conceito da montagem surge da necessidade de se construir uma narrativa a partir da chamada ótica dos vencidos, como contraponto às versões unidimensionais da chamada história oficial, onde prevalece a perspectiva dos agentes vitoriosos no processo histórico e o conveniente ponto de vista do opressor.

Ao contrário de nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile, que também sofreram processos ditatoriais, o Brasil não tem mostrado empenho no acerto de contas com o seu passado. Se obtivemos um relativo avanço em relação à liberdade dos presos políticos, à retirada dos partidos clandestinos da ilegalidade e ao retorno dos ativistas exilados, o mesmo não pode ser dito sobre a recuperação dos restos mortais dos militantes assassinados e a punição dos responsáveis por esses crimes. O caminho que percorremos está marcado por uma série de renúncias, impunidades, ocultação e negação dos acontecimentos. Além do número vasto e ainda incerto de desaparecidos políticos [2], não houve tribunal que levasse a julgamento os torturadores, de maneira que permanecem impunes aqueles que se serviram do aparato de Estado para seqüestrar, estuprar, ocultar cadáveres e assassinar. (SAFATLE, 2011).

É preciso atentar ao caráter civil-militar do Golpe de 64. O filósofo Vladimir Safatle chama atenção ao fato de que toda ditadura conta com um conjunto de carrascos voluntários, que mesmo “não trabalhando diretamente nos aparatos repressivos, atua indiretamente no suporte e na reprodução das justificativas de suas ações [3]”. A infelizmente rememorada Marcha da Família com Deus pela Liberdade [4] é um exemplo vergonhoso do frisson pseudo-politizado da classe média direitista, colocado nas ruas do país como um carnaval de péssimo gosto da burguesia brasileira. As passeatas em verde-amarelo, as ridículas coreografias e os bonecos infláveis nos fazem relembrar Marx, quando afirma que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa [5].”

A adesão por parte de setores conservadores da sociedade civil brasileira ao golpe não seria possível sem o apoio incondicional da grande mídia, bastante empenhada em uma campanha massiva de propagação de falso terror e instabilidade nacionais calcada na pecha da “ameaça comunista”. Nos anos 60, a empresa Rede Globo de Televisão, inimiga do processo democrático e amante das ideologias dominantes, já caminhava a passos largos para obter o oligopólio da mídia nacional, controlando os principais veículos de comunicação e manipulando a opinião pública. Jornais de grande circulação, canais de TV e rádio não apenas acolheram o golpe, como o aplaudiram e o cevaram. Ou seja, a grande mídia do passado foi golpista tanto quanto o é hoje.

Quanto à violência institucional, esta permanece em larga e assustadora medida. Em 2001, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) emitiram um relatório [6] denunciando o governo brasileiro pela persistência da prática de tortura no país. Ao contrário do que se poderia esperar, os casos de tortura e assassinato cometidos pela mão do Estado aumentaram mesmo com o fim oficial da ditadura. Vide as condições da população carcerária e os chamados autos de resistência [7]. A população pobre, negra e periférica vem sendo alvo enfático da brutalidade estatal, que se manifesta não somente através da negação de direitos básicos, mas principalmente por meio da ação de uma polícia violenta, criminosa, minada por milícias, grupos de extorsão e extermínio e que insiste sistematicamente em dizimar a parcela menos favorecida do povo. Se a ditadura acabou, falta ainda avisar a Polícia Militar.

As heranças da ditadura estão em toda a nossa estrutura social, sendo possível apontar as derrocadas na saúde, na gestão pública, no possível avanço de uma consciência social e de classe. Logo, adentrar esse debate nos conduz a uma irremediável constatação: com vistas à plenitude do Estado Democrático de Direito, faz-se necessário um programa político que prime a regulamentação da mídia como ponto primário para o alcance do bem estar social, pois assegurar que o espaço do debate seja plurifacetado e multidimensional é requisito básico para o exercício da democracia. Somam-se a essa pauta primária a reforma agrária, a reforma tributária, a conseqüente e progressiva taxação das grandes fortunas, a reforma urbana, o fim da Polícia Militar e o fortalecimento das políticas públicas de saúde, educação, transporte e segurança.

Qualquer governo que negue a urgência dessas demandas está endossando o histórico de violência e exploração do povo. A abertura de todos os documentos referentes à Ditadura, seguida de investigação, julgamento e devida publicização dos nomes dos criminosos também deve entrar nessa lista. É preciso dar nome aos bois. É dever do Estado investigar, processar, punir e reparar as graves violações aos direitos humanos cometidas durante os anos de repressão. A negação dos fatos não deve ser encarada como um lapso amnético ou um mero relativismo conceitual e sim como um sintoma claro do mais perverso posicionamento frente à História.

Dentre as várias maneiras de se contar a história de um país e dentre as várias maneiras de se conduzir o fazer artístico, a escolha em Antígona é calcada no legado deixado pelos movimentos sociais, em sua insistência em resistir e em provocar outras sensibilidades, percepções e olhares sobre a nossa história. A iniciativa do Coletivo soma-se ao movimento de familiares de desaparecidos políticos e a outros setores vinculados à proteção de direitos humanos, com vistas a efetivar ações que denunciem os sintomas do fascismo em nossa estrutura social, que apontem ao reconhecimento dos sinais de insistência do passado no presente. As cenas propostas a partir da tragédia de Sófocles fazem referência direta aos acontecimentos políticos contemporâneos, pois o trabalho se baseia na crença de que a Arte pode e deve ser ferramenta na construção de uma mentalidade crítica. Ao compreender o fazer artístico como peça chave no processo de mobilização e de enfrentamento de demandas políticas e sociais, o Coletivo toma para si a obrigação de honrar a memória de nossos mortos.

Contar a história pela perspectiva de grupos historicamente silenciados, assim como apontar aos direitos subjetivos que lhe são inatos, significa também ir contra uma das muitas farsas sob a qual a noção liberal de democracia foi fundada, de que todos os pontos de vista são válidos ou ainda de que o perdão aos facínoras é necessário ao alcance do “bem estar social”. É recorrente também o pensamento de que o passado ficou para trás, que devemos seguir adiante e que a tentativa de se escovar a história a contrapelo seria um sintoma de “ressentimento” da esquerda. Ora, sabemos que um discurso soberano só chegou a esse lugar através da violência contra os que foram privados de sua voz e continuam sendo sistematicamente excluídos dessa possibilidade. Que fique claro: nós não almejamos a conciliação com nossos carrascos. Nem os dos passado e nem os do presente. Ao interino golpista Michel Temer, relembramos que a legitimidade de um governo só se dá a partir da vontade soberana do povo e que é direito fundamental de todo cidadão rebelar-se contra as estruturas que o oprimem. Endossamos a fala de Antígona ao repetir que: Não! A cidade não pertence a quem a governa!

[1] ^ Tragédia do dramaturgo grego Ésquilo datada de 467 aC.

[2] ^ O Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil aponta um total de 379 nomes, porém esse é apenas o número relativo às vítimas registradas. Acessado em 27 de março de 2016 às 16:20 e disponível em http://www.cartacapital.com.br/revista/793/a-verdade-enjaulada-9436.html

[3] ^ Trecho do texto A Verdade Enjaulada, de Vladimir Saflate para o periódico Carta Capital, disponível em http://www.cartacapital.com.br/revista/793/a-verdade-enjaulada-9436.html. Acessado em 08 de fevereiro de 2015 às 22:02

[4] ^ Movimento constituído por uma série de manifestações, ou "marchas", organizadas principalmente por setores do clero e por entidades femininas em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Congregou segmentos da classe média, temerosos do "perigo comunista" e favoráveis à deposição do presidente da República. ( LAMARÃO, Sérgio. A conjuntura de radicalização ideológica e o golpe militar. Acessado no dia 05 de abril de 2016 às 16:23, disponível em http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/A_marcha_da_familia_com_Deus )

[5] ^ Karl Marx em seu texto “18 de Brumário para de Luís Bonaparte”.

[6] ^ FARIA, Cátia. Revolucionários, Bandidos e Marginais: presos políticos e comuns sob a Ditadura Militar. UFF (Dissertação de Mestrado). Niterói, 2005.

[7] ^ Criados na época da ditadura militar, os autos de resistência consistem na forma como são registrados os homicídios praticados por policiais. Também chamados de “resistência seguida de morte” persistem no tempo, inclusive ampliando sua utilização, e hoje, em plena democracia, são utilizados para encobrir milhares de mortes por ano que não resultaram em qualquer tipo investigação. Tal instrumento naturaliza o que deveria ser a exceção, buscando a legitimação de uma forma de segurança pública ilegal baseada na letalidade, e permanece existindo sem respaldo algum no ordenamento jurídico brasileiro, com o único objetivo de disfarçar homicídios e execuções sumárias contra a parte mais vulnerável e historicamente excluída pela sociedade brasileira: negros, pobres e moradores das periferias. Para mais informações: http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Autos%20de%20Resist%C3%AAncia_FINAL.pdf

início
Trato, Tratar, Tradado, Tratando
Clarissa Paiva

Clarissa Paiva é artista plástica brasiliense, formada pela Universidade de Brasília. Já participou de várias exposições e mostras em Brasília, atualmente produz e leciona em seu ateliê na asa norte.

Como viver

Como ter liberdade para temer, amar, criar sendo:

  • Mulher
  • Artista
  • E (portanto) Vagabunda

Que belas perguntas, que belas palavras.

Infelizmente, não sou das artistas mais eloquentes, me dou bem com as imagens, com o visual, com o fazer. Mas como fazer? Em um momento tão específico do nosso tempo. Em poucas semanas, eu e mais centenas de amigos, amores, familiares e colegas … perdermos tanto espaço, tanto respeito, tantas coisas.

Ei! Artista! Pára de reclamar e vai trabalhar, seu vagabundo!

Olá, meu nome é Clarissa, sou uma profissional criativa. Sou muito boa no que eu faço e tenho orgulho do meu currículo.

Porém, não existe industria na minha cidade, no meu local onde vivo, ou no meu país para absorver as minhas habilidades. Não tem. Tem algumas. Tem poucas. Mas... Não tem? Tudo bem. Eu faço. Eu faço em Brasília, no Brasil, no mundo, em todos os lugares, mesmo trabalhando sete dias na semana, e sei lá quantas horas por dia. Verdade, não tenho hora para começar, mas também não tenho hora para acabar. Tenho ideias, anseios, conceitos e dores. Não tem botão para desligar, final de semana para relaxar, férias de fim de ano para esvaziar e mente. Os anseios são muitos, a produção é constante e, como sempre, o tempo é pouco. Será que aí que mora o nosso erro? Trabalhamos tanto e de forma tão frenética que nem percebem que o que estamos fazendo?

Parece que estamos à toa? É assim que os nossos amigos e familares nós veem? Sim? Sim.

A verdade é que o nome poderia ser outro, poderia ser Andreia, Alessandra, Maria, Ana Paula, Cecília, Sophia, Fernanda, Rosa, Júlia, Cíntia, Vívien, Liliana, Camila, Natália, Jessíca, Alice, Claudia, Flávia, Joana, Beatriz, Catarina, Kelly, Sílvia, Mariana…. E a história, a rotina, e as dores seriam as mesmas. Todas nós, putas, à toas, vagabundas, sem nada para fazer.

Por isso, muito obrigada minhas queridas vagabundas contemporâneas, e principalmente as antepassadas. Com todo o meu coração. Sem vocês, eu não estaria aqui, lutando cada dia para um todo melhor.

início
agora y sempre
tatiana nascimento dos santos

tatiana nascimento adora mar, céu, carta, sol, planta, vento, bicho y tem feito poesia, vídeo-poesia, slam, tradução, edição de livro artesanal, música+poesia no bando d'água... também tem achado formas de lutar sem perder a alegria, o amor, y o prazer (salve o prazer, salve o prazer!), y gosta de compartilhar(-se).

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agora y sempre,

des-aprender
o medo
o silêncio
a des-confiança pela

diferença:

como sempre é nóis
por nóis mesmas
des-atando os nós lembrando que não tamos sós
brilhando como sóis

y

invadindo a aparência, a opulência
dura/turva/mesma do concreto
opressivo deprimente

o poder mente
a gente sente:

a hora é agora, des-temer
a secura
a estrutura
o saudosismo pela
ditadura o pavor da viatura
y seu poder: fazer Egun de Erê

nós, as herdeiras das Yabás, as filhas
da noite escura, somos fluidas
y sabemos ser acidez:

corroer

a continuidade,
a herança colonial
apaixonada pelo capital
heteropatriarcal dos homens
brancos y seus golpes
políticos
jurídicos
de açoite

somos muitas
somos cura
sabemos

des-temer

agora y enquanto tiver
retrocesso
vai ter

resistência y luta

"pois seja o que vier,
venha o que vier"

início
Bruxaria
Mayra Revolutionaif

Mayra Revolutionaif é artista social. Depois de passear pela UnB, constrói e reflete arte com crianças desde 2005. É idealizadora e realizadora do Projeto Lacuna - mostras de videoarte - que atualmente acontecem na Alfinete Galeria. Já investigou e contribuiu com os programas educativos de quase todos os museus e espaços culturais da cidade, sendo coordenadora do Programa Educativo Gente Arteira, na Caixa Cultural, em seus melhores anos (2011 e 2012). Atualmente é professora de Artes Visuais na Escola Parque da 210/11 norte, onde elabora com seus estudantes um enorme painel sobre a Via Láctea.

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Bruxaria I

Bruxaria II

Bruxaria III

início
De uma ilha a outra — O cenário das Artes em Brasília
Clarice Gonçalves

Nascida em 1985, graduada em artes visuais pela Universidade de Brasília em 2008. Vem realizando exposições em território nacional desde 2004, participa esporadicamente de feiras em SP (PARTE), e já teve algumas experiências em exposições coletivas em Nova Iorque e Londres, em 2011 foi sua primeira mostra individual em São Paulo, 2013 o ano que nasceu seu filho, 2014 lançou um livro de 200 paginas com textos de Graça Ramos, Juliana Monachesi e Mario Gioia, no final deste mesmo ano participou da mostra ´figura humana´, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, com curadoria de Raphael Fonseca. Atualmente se recupera do puerpério e produz para uma possível exposição em São Paulo e outra em Brasilia.

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(anedota inspirada em uma viagem a Havana)

Todos em águas profundas.
Alguns submersos, outros mergulhando... há quem nade habilmente, há quem se desespere (muitos).
Há os que pelo cansaço ou incapacidade se apóiam nos que com dificuldade ou não se mantém com a cabeça fora d´água.

Alguns flutuam pelo fluxo
Outros tentam pular acreditando assim poder asceder de tamanho lamaçal.

Tem quem diga que foi o primeiro a entrar na água, quem conte que sabe quem abriu a torneira, os que dizem conhecer o fundo, outros se gabam de haver visitado a margem, mas mentem dizendo que preferiram ficar dentro d´água...

Tem quem cause alvoroço dizendo que começa a tocar o fundo com os pés, fazendo assim, com que todos os sigam feito moscas;
Há quem afirme que não há fundo, ou margem, ou água. E principalmente quem acredite que tudo que existe é tão somente água.
E há os que rechaçam tudo que não seja líquido.

Mas estão todos com água até o pescoço.

Tem também aqueles que se afogam numa profundidade equivalente a altura de seus joelhos e se recusam a ficar de pé.
Outros que no raso, em pleno poder da terra firme, deitam e deixam só a cabeça fora d´água, assim, não diferem dos demais, tudo por um medo infundado de que os sufoquem num afogamento quase impossível...

No fim pergunto se há realmente alguém fora d´água.

Vi alguns que, submersos por comodidade de acreditarem que já nadaram demais, vivem do ar que lhes dão os outros, pois no fundo onde vivem, trocam pelo oxigênio, grãos de areia para alimentar a esperança em terra firme aos que perderam o fôlego... grãos estes que antes mesmo de alcançar a superfície fogem novamente para as profundidades abissais...

Tem quem nade como se estivesse voando, custe o esforço que custar.
Há quem culpe os pássaros,
e quem não os vê.
Também os randômicos, que tentam todas as estratégias dos demais, encontrando nesse ato seu mérito.
Tem quem queira ser condecorado como melhor nadador, boiador.. quem queira um prêmio póstumo por afogamento voluntário ou menção honrosa para a quantidade de água engolida.

Tudo isso tão somente até chegar a estação da seca.