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REVISTA MORDER
ano 1, número 2

universo cadente

dezembro de 2016

abiqu
tatiana nascimento dos santos
Você está sumindo
Miriam Araujo
Dendê II. Reza para a Boca do Mundo
Nina Ferreira
coreografia I
Silvie Eidam
O chão
Débora Amor
Vão-se os anéis, ficam-se os dedos
Gabriela Starling
sem título
Rita Almeida
Invaginação ou Sugestão de estampa para toalha de mesa de mulheres belas, recatadas e do lar
Mari Mira
Caos
Carla Andrade
Lar de Bento e Esperança e fé
Litieh
Velocidade da Luz
Nina Orthof
Corpo contra conceito
Maria Eugênia Matricardi
Cadente Ascenção
Clarissa Paiva
Na cadência do medo ou declaração de amor ao chão
Sara Freire
conto os dias pelas calcinhas
Mayra Revolutionaif
sem título
Clarice Gonçalves
início
abiqu
tatiana nascimento dos santos

tatiana nascimento adora mar, céu, carta, sol, planta, vento, bicho y tem feito poesia, vídeo-poesia, slam, tradução, edição de livro artesanal, música+poesia no bando d'água... também tem achado formas de lutar sem perder a alegria, o amor, y o prazer (salve o prazer, salve o prazer!), y gosta de compartilhar(-se).

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abiqu

segunda:
eu y ela de mãos dadas numa canga, assistindo ao apocalipse. ela, como sempre, tinha os bolsos y a mochila cheia de lanchinho, me oferecia. eu não sentia medo, e a canga era tamanho normal – não como aquela tarde mineral.

terça:
os peixes ornamentais, sentindo saudade do mar, se suicidavam no aquário do café, corpos boiando. eu preferia beber os restos de xícara alheia (mais doces). da janela o mar escuro, parecia uma paisagem sonhada.

quarta:
a criança morta antes de recém-nascida vai com ex-futura mãe-y-pai pra um canavial, holográfica. oferenda bem alto um segredo importante da vida. ocupada em saber se ela era erê ou egun, impercebo:

que falava línguas ancestrais.

(sim, eu tava dormindo quando soube disso tudo, mas não tava só sonhando não.)

[v. 4, 18/ago/2016]

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Você está sumindo
Miriam Araujo

Miriam Araujo é gestora cultural e artista visual. No mundo das artes, trabalha com fotografia, polaroid e aquarela. No mundo da gestão, trabalha avaliando e monitorando o cumprimento das metas do Plano Nacional de Cultura. Adora conversar sobre esoterismo, música e cinema. Para os leitores da morder que ficaram instigados pela temática desta edição, ela indica o filme mais universo cadente do ano que é "O Cavalo de Turim" do diretor Béla Tarr.

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Você está sumindo

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Dendê II. Reza para a Boca do Mundo
Nina Ferreira

Nina tem como fundamento [ou fundação] de sua poética a relação entre corpo e memória, da qual a maior força vem da tentativa de recriar narrativas próprias a partir da diáspora negra e dos seus tantos efeitos e objetos. Para criar, usa performance, poesia, gravura e vídeo [mas tudo pode mudar].

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Dendê II. Reza para a Boca do Mundo

Dendê II. Reza para a Boca do Mundo (2012). Foto: Emília Silberstein.

Dendê II. Reza para a Boca do Mundo (2012). Foto: Emília Silberstein.

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coreografia I
Silvie Eidam

assim batizada em homenagem a duas aves.

pisciana com ascendente em aquário e lua em touro, filha de oxum ypondá, com o dosha dominante vata, um pouco pita e quase nada de kapha.

pinta, fotografa, desenha, instala, filma e às vezes escreve.

silvieeidam.com
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coreografia I

"enquanto isso, a matriarca dança."

coreografia I (2016). Óleo sobre tela, 100cm x 70cm.

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O chão
Débora Amor

Débora Amor, artista plástica, estudou na Universidade de Brasília. Já participou de algumas mostras em Brasília e São Paulo, participou do projeto de ilustração “Paisagens Sonoras” pela editora Mov Palavras; possui trabalhos em exposição permanente na Galeria Virtual Conjunto A4- Galeria Virtual de Arte Contemporânea. Atualmente trabalha com desenhos, pinturas entre outras dimensões que permeiam instâncias de relatos autobiográficos e de experimentações com diferentes materialidades que se apresentam em seus percursos de produção.

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O chão

O chão é uma força que nos diz o peso que temos em uma capacidade de cabermos dentro do corpo. O chão se parece com uma certeza de encontro com o que temos em frente; seja no processo de ver ou de ser vista. Acho que é um encontro com a nitidez de ver dentro de uma gravidade que não se pode evitar. É um processo final de queda e encontro com o peso das palavras. A experiência de queda se configura como condição de fala que se materializa em uma conversa permanente com o chão. O chão é o limite da voz e do traço, aparece em um ponto de origem e fim, começo e final do espaço percebido dentro do corpo e de seu peso.

O ato de cair e testemunhar o espessamento das coisas se fazem reger pelas leis do chão, da gravidade e do necessário peso de estar dentro do corpo, de um limite, de uma margem de definição. A definição do que é visto e dito é margeada pelo peso do corpo. Nessa margem, um ponto e uma ruptura definitiva com o pacto de viver somente dentro ou somente fora. Dentro e fora estão em uma mesma visão, em um lugar comum de passagem pelas leis da gravidade.

Sem título. 23 x 23cm. Nanquim, conté, guache, pastel e colagem s/ papel. 2014.

Sem título. Medida: A3. Nanquim s/ canson. 2014.

Chão. 70 x 50cm. Conté, pastel, guache e acrílica s/ papel revestido de gesso. 2014.

Sem título. Óleo s/ tela. 2014.

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Vão-se os anéis, ficam-se os dedos
Gabriela Starling

Gabriela Starling é artista plástica e educadora, graduada em artes plásticas pela Universidade de Brasília e mestra em poéticas contemporâneas pela mesma instituição. Seu trabalho poético investiga principalmente a cor, o traço, a linha, a materialidade das tintas e pigmentos e sua relação com suportes têxteis. Em educação, vem refletindo bastante sobre assuntos como autonomia, liberdade e empoderamento.

gabistarling@gmail.com

Vão-se os anéis, ficam-se os dedos

Dizem que: "professora de arte é uma artista frustrada".

No caso de quem fala de ambos os lugares, como é o meu, vale a pena olhar essa afirmação mais de perto. Ela é verdadeira? Bem, acredito que essas duas instâncias, de educadora e de artista, caminham juntas. No meu contexto pessoal: geralmente quando a artista está frustrada, a professora de arte está também.

"Menos com menos, dá mais"? Bem... difícil responder. Pode ser que a educação possa criar um lugar mais confortável para x artista no mundo, pode ser que a educação em arte conscientize e traga mais espaço e discussão sobre o meio da arte para mais e mais pessoas... pode ser, sim, que ela crie um ambiente em que possamos conversar com mais carinho, mais abertura, e afeto, e que não fiquemos circunscritos ao mundo das galerias de arte, pensando nas artes plásticas. Mas, muito mais do que exercer uma função de “chamariz”, do tipo “trazer um público mais variado para a galeria de arte ou o museu”, tenho pensado cada vez mais na função inversa: a auto-educação da artista plástica/educadora, que transita por espaços diversos, de realidades tão amplas e idades muito variadas. Contato que me permite dilacerar as certezas e preconceitos do circuito artístico, do contexto acadêmico, do círculo pessoal de amigxs artistas. Contato que traz muitas tensões entre opiniões e contextos de classe e raça diversos, dentre outros vários recortes possíveis. É uma explosão como o big bang: no ato de uma matrícula, algo grandioso irá acontecer, e nosso universo jamais será o mesmo! Tudo vai mudar em mim e naquelx estudantx que se abre para partilhar comigo. E lá vamos nós! Mais do que cadente, universo em expansão.

* * *

"Quem sabe faz, quem não sabe ensina". Esse ditado eu descobri recentemente. Deixo com vocês, para que cada umx possa aceitar, ou refutar, a seu próprio modo. De mim, apenas perguntas: Educação é ensinar? Será que nós, professorxs, ensinamos, de fato, alguma coisa? E, partindo do pressuposto de que é possível ensinar, é possível ensinar algo que não se saiba? E qual é o ponto em que achamos que sabemos e já estamos aptxs a ensinar? Quando começamos a ensinar, paramos de aprender? Nós ensinamos por medo de aprender, e descobrirmos que estávamos erradxs? Novamente, penso em auto-educação, experiência, afeto, contato.

* * *

"Vão-se os anéis, ficam-se os dedos". Agora trago o foco para a realidade dxs artistas e para o que, supostamente, anda nos deixando tão frustrados. Penso primeiro no embate entre uma grande vontade de expressão, de mostrar nosso trabalho, de ter visibilidade, por um lado, e, por outro, a cobrança de uma constante aparição. Quando é que podemos ficar ali quietinhos, contemplando o pôr-do-sol? Nesse momento, deixamos de ser artistas?

* * *

"Quem não é visto, não é lembrado". Pois então, continuando, naquele momento em que nós, por qualquer motivo, deixamos de vir a público, por assim dizer, acontece como uma estrela cadente no céu escuro. Nosso “estrelato artístico” cai, despenca, desmorona. Nossas fotos e nomes somem dos folders e das redes sociais. Não estamos nos jornais. Se não aparecemos em muitas vernissages e encontros artísticos, vamos caindo, caindo, sumindo, sumindo, até que ninguém veja nosso brilho no céu. E aí? Nesse momento, deixamos de ser artistas?

* * *

Então, eu me pergunto: estamos sendo bem remuneradxs quando estamos no topo, e brilhamos muito como artistas plásticxs? É confortável, seguro, estável, bom ser artista plásticx, no contexto brasiliense e além? Somos valorizadxs e respeitadxs? Nos sentimos inseridxs, parte de um contexto, em que podemos lutar por direitos, melhorias de vida? Ou sentimos que estamos flutuando? Flutuando, viajando, à deriva, sem lugar, ou caindo, caindo, igual Alice no país das maravilhas na toca do coelho? Bem, eu me sinto caindo, por isso estou escrevendo esse texto. Eu me sinto em constante queda, como numa chuva de meteoros: todxs se esforçando para ver quem brilha mais, sabendo que no próximo segundo iremos cair. Com os dedos hipotecados, só nos restam os anéis, para ver se assim, à base de especulação, recobramos nosso estrelato.

Gente, não tem essa de artista x professora. Se a educação vai mal, a arte também vai mal; se a arte vai mal, a educação em arte vai também mal; cada uma é parte do mesmo todo, e a desvalorização de uma delas se amplia e ramifica para todos os campos de nossa atuação. Em parte, me parece, porque ninguém quer dar o braço a torcer de que não sabe, de que não tem, de que falta, de que precisa dx outrx, para criar, para ser, para estar no mundo, para aprender. Acredito, sucesso vem daí. Abertura, contato, surpresa, expressão, relação. Sem isso não tem arte e não tem educação. Não tem tesão e nem tem solução (para finalizar com mais um bordão...).

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sem título
Rita Almeida

Rita Almeida tem 30 anos, é artista visual, gosta de escrever e tem medo do mar.

Tenho em mim um silêncio de casa abandonada, de paisagem sem vento ou pássaro. Escrevo para disfarçar essa aguda mudez, mas muitas horas esse tique me aborrece. Porque quem escreve na presença alheia parece louco.

C. me disse que nadasse mais um pouco. Lá da areia chamou a atenção para o fato de que eram 11:11 e riu. Nossas pequenas fugas para lugares ermos nos transformavam profundamente. Cada silêncio e conversa sobre paisagem, medo ou amor, além de espaço para a livre partilha de intimidades, representava a experiência da vida que paríamos diariamente em nossa solidão.

— Que bonito ver a silhueta quase apagada das montanhas nesse horizonte. É verdade que às vezes a paisagem me interrompe o caminho, sabia? Eu me envolvo com essas coisas. Gosto de parar. Quase sempre me imagino morando nesses entrelugares.

— Por que acha que quer tanto se isolar?

— Inadequação, talvez. Ou será desgosto mesmo?, ela riu.

Na última noite choveu e ficamos no quarto, deitadas no chão. Eu falei sobre ter de escrever um texto com o tema ‘universo cadente’.

— Mas essa cadência é como a da estrela ou como aquela cadência do samba?

— Eu não sei. Pensei na cadência da estrela.

Aí ela falou do desapontamento em saber sobre as estrelas cadentes — sobre os termos e aspectos científicos de certas coisas, na verdade. Disse que estrela cadente não é estrela coisa nenhuma, mas um fragmento de asteroide ou cometa, incendiado pelo atrito com a atmosfera terrestre. Citou mais uma vez a enseada do Manoel de Barros. Queria às vezes esquecer de tudo e inventar uma cosmologia própria, baseada tão somente na vivência sensível do mundo.

— Isso não é coisa que se diga sem ouvir ainda em troca meia dúzia de sermões cientificistas. É boa de dizer no meio do povo ou na literatura. Ouvir sobre universo em queda não tem nada de ruim. É tão bonito como soa o próprio nome. Escreva isso.

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Invaginação ou Sugestão de estampa para toalha de mesa de mulheres belas, recatadas e do lar
Mari Mira

Mari Mira é taurina com ascendente em virgem, lua em escorpião e vênus em touro. Brasiliense resiliente, já foi sorveteira em Roma, lanterninha em Barcelona e professora de animação stop-motion na Samambaia. Hoje é VJ ocasional e sócia de restaurante de comida paraense em tempo integral.

maridumira@gmail.com

Invaginação ou Sugestão de estampa para toalha de mesa de mulheres belas, recatadas e do lar

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Caos
Carla Andrade

Carla Andrade Bonifácio Gomes é mineira de Belo Horizonte. Está em Brasília desde 2000, e atua como jornalista e poeta. Acabou de lançar o megamíni Voltagem, pela Editora 7Letras. A mesma editora publicou a segunda edição de “Artesanato de Perguntas”, no final de 2013, livro que recebeu recursos do Fundo da Arte e da Cultura (FAC) do Governo do Distrito Federal em sua primeira edição. Seu livro de estreia “Conjugação de Pingos de Chuva” (Editora LGE), de 2007, também foi contemplado pelo FAC.

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Caos

Por que cavoucar?
As larvas suculentas
virando deus
ali naquele resto de pássaro
que seria deus
bem perto do umbigo
que pisava sem ver
e se sentia deus
na tarde mais normal
de todos os dias.
Na tarde mais normal
de todos os dias
a criança soprou o dente-de-leão
como se desintegrasse o universo.

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Lar de Bento e Esperança e fé
Litieh

Litieh é cantora e compositora goiana, radicada em Brasília. Suas influências são Elis Regina, Esperanza Spalding, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento e o Clube da Esquina, Clara Nunes, Dominguinhos e Luiz Gonzaga. Em 2015, lançou o seu primeiro CD, Catiré, sucesso de crítica e público e elogiado por vários artistas da música brasileira. Em sua carreira, Litieh leva consigo um exímio repertório da música brasileira e cativa o público com interpretações marcantes em suingue, afinação e autenticidade. Dividiu o palco com Mestrinho do Acordeon, Gabriel Grossi, Pablo Fagundes, Rafael dos Anjos, Tulio Borges, Adora-Roda, Helio Delmiro e outros expoentes da música brasileira.

litieh.com
youtube

Lar de Bento e Esperança e fé

Lar de Bento (Litieh).

Esperança e fé (Wilson bebel).

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Velocidade da Luz
Nina Orthof

Nina Orthof nasceu no Rio de Janeiro, em 1987. Vive e trabalha em Brasília. Em primeiro de abril de 2016, tornou-se Mestra em Poéticas Contemporâneas pelo Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB). Desenvolve seu trabalho autoral principalmente em video onde levanta reflexões poéticas acerca de conceitos como: imensidão, navegar, distâncias imaginárias e medidas impossíveis. Integra o grupo de artistas-pesquisadores Vaga-mundo: poéticas nômades. Participou de exposições coletivas em galerias particulares e espaços como Espaço Piloto da UnB, Alfinete Galeria e Museu Nacional do Conjunto da República. Foi selecionada para o 20º Salão Anapolino de Arte (2014) e para o 1º Premio Vera Brant de Arte Contemporânea (2016).

ninaorthof.com

Velocidade da Luz

em passos lunares, pequenos satélites caminham órbitas projetadas e deixam traços incendiários. ante a duração do impossível, a surpresa se fez presente: corria a moça com cosmos na barriga, a bicicleta com o mundo em suas borrachas, a miúda menina que traçava o espaço certeiro e os lunáticos amorosos. Lanterna mundana, espaço ordinário e uma composição cósmica. a velocidade da luz sequestra a realeza e a ferocidade de tamanha rapidez para torná-la relativamente boba e profundamente vulnerável. concretiza com poeira sete voltas ao redor do planetário. velocidades lúcidas, revoluções mínimas.

VELOCIDADE DA LUZ
[video-performance]

Stills de Velocidade da luz, vídeo-projeção, 2015.

Stills de Velocidade da luz, vídeo-projeção, 2015.

Stills de Velocidade da luz, vídeo-projeção, 2015.

Stills de Velocidade da luz, vídeo-projeção, 2015.

Registro dos Velocistas (performers).

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Corpo contra conceito
Maria Eugênia Matricardi

Maria Eugênia Matricardi é artista visual e doutoranda em Poéticas Contemporâneas na Universidade de Brasília-UnB. Pesquisa performance e políticas estéticas.

mariaeugeniamatricardi.com

Corpo contra conceito

Performance

Conceito: Maria Eugênia Matricardi
Performers: Maria Eugênia Matricardi, Diego Azambuja e Rogério Luiz
Materiais: corpo nu e caminhão pipa com 20 mil litros de água
Duração: 25 minutos
Museu da República, Brasília-DF
2013

Nua me posiciono em frente à parede externa do Museu da República. Um caminhão pipa está a alguns metros de distância de frente para o meu corpo. Os outros performers seguram a mangueira e acionam o jato de água com pressão máxima contra o meu corpo até que o reservatório de água do caminhão pipa acabe. O corpo intima o fluxo, estabelece lugar de combate. O jorro de água comprime a carne, superfície contra superfície. Espaço incidente onde as coisas se manifestam em sua materialidade somente em relação ao seu limite contra o espaço: contraposição: estar contra é uma forma de engendrar contato, zonas de aderência. O corpo incorre em conceitos, se expõe, cai em fluxo, deixa-se arrebatar pela pressão do jato.

Câmera: Cled Pereira, Cedric Aveline, Igor Aveline e Márcio H. Mota
Edição: Márcio H. Mota
Performance realizada durante o evento Performance, corpo, política-PCP 2013.

Uma borboleta branca sobrevoa o vapor úmido, próxima à cachoeira. Uma gota assertiva pode lhe aniquilar a vida, destruir suas asas de seda frágeis. Ela se arrisca por encantamento, como se arriscaram por encantamento da luz da lâmpada os insetos carbonizados.

Assim fui acometida por uma imagem: meu corpo nu recebendo um fluxo de água intenso da mangueira de um caminhão. Uma nitidez que não passa pelas palavras, pois as palavras nos enveredam pelo labirinto da dúvida. Lucidez delirante assumindo os desejos com a crueldade que eles desejam sentir. Não há submissão, há entrega. O que somos capazes de fazer por uma sensação? Não se sabe. Acredito que muito. Era algo mais próximo à intuição, ao não- sabido, imagem praticamente intacta, sensação que permaneceu consistente até ser executada. Não havia muito que dizer. Caberia apenas ser na sensação, assumir a imagem como experiência e confiar na força que ela invocava. Mergulhar na sensação até deixar de tê-la, ou ainda, ser-sensação e na sensação como um estado que percorre corpointeiro [sic]. e abandona o organismo.

Um corpo nu, um caminhão pipa com vinte mil litros de água, dois homens para segurar a mangueira, uma estrutura arquitetônica limpa visualmente, fim de tarde, pôr-do-sol. Água, luz, corpo. Água densa, flexível, abraça formas existentes, se molda, flui capaz de deformar e perfurar as superfícies mais duras.

Retiro o roupão, me posiciono nua de costas para a parede externa do museu, peço para acionarem a mangueira na pressão máxima. O corpo intima o fluxo, estabelece lugar de combate. O jorro de água comprime, deforma a carne, superfície contra superfície; espaço incidente onde as coisas se manifestam em sua materialidade somente em relação ao seu limite contra o espaço. Contraposição: estar contra como forma de engendrar com-tato, zonas de aderência. Corpo contra conceito. Conceito contra conceito. Corpo contra corpo. Na vulnerabilidade de deixar-se escorrer, deixar o corpo vibrar sem organismo. Pele água, pele fluxo, pele ar, quase nada, poça no chão.

O corpo incorre, escorre, se lança, se expõe, flui, se deixa arrebatar pela pressão do jato, é empurrado contra o duro, concreto, realidade: limite inegável que se impõe como barreira material. Atua no limite propondo deslimites.

A violência desta ação nada tem a ver com a violência das guerras ou da polícia. Em ambos os casos a violência transpassa o corpo, o sistema nervoso, a carne. Mas uma lhe faz mergulhar na sensação abrindo caminhos para que se possa conhecer outros lugares de experimentação, onde a vida não depende do organismo, por isso mesmo vai além dos limites do que é representado, vivido. A outra lhe rouba a subjetividade, atua por medo e constrangimento, determina e localiza os lugares onde podem habitar as sensações, estancando, desta forma, a potência do sensível. Se me lanço na tempestade variável é para sentir o corpo vibrar, não o organismo.

O jato de água violento dispersa manifestações, cala a revolta dos presos em ritual humilhatório, controla. Ele é trazido na ação com a crueza arrebatadora de um poder, sem o horror destas imagens, somente com a sensação que o torna controle presente em diversos níveis, agência do poder imanente sobre o corpo, deformando a carne. Este é um fato recorrente, mas se atualiza na ação como acontecimento singular. Preferi usar poucos elementos, deixar acontecer com força de reverberação própria, sem poluição visual ou simbólica. A brutalidade não anula a beleza.

Prefiro quando o corpo diz sem dizer. Grita em silêncio fazendo a vida reverberar na superfície da pele. Suspende hábitos, rasga roupa, entende corpo como corpo, só isso, tudo isso... muitos podem ser os tipos de nudez: desterritorializada ou não, navalha na carne, pornográfica, sagrada, sutil, rito de gênese, travesti na pista, gesto no mundo, não importa: que o corpo seja campo de batalha.

Sendo a ação algo que não se diferencia da vida, gesto estetizado sim, intencional, poético, no entanto, grávido de inusitado, de vibratilidade do corpo, das coisas que passam, portanto, vulnerável, me pergunto: o que se preserva?

A água arrebenta a dor que há na pele. Pele-água escorrendo. O fluxo-jato lava a lucidez do corpo. Derretimento. Densidade. Água-viva. Absorção. Não absorvo nada, as coisas me absorvem.

O que se pode dizer quando o corpo abandona o organismo e surgem as sensações que excedem qualquer vivido? Não seria esta uma possibilidade de criar afectos, lugares de sensação que indeterminam nossa compreensão?

Se a ação se baseia no vivido, no cotidiano, se ela transita por opiniões, não é para buscar o espetáculo. Ela abre via para tornar sensíveis forças insensíveis do cotidiano.

Para captar uma determinada força de sensação é necessário deixar-se permear por ela, torná-la visível. É necessário ser frágil para abrir-lhe caminhos e ser forte para suportá-la, porque nem sempre a melhor sensação para uma ação é a mais agradável. Com muita frequência não é.

Afastar de si o que é fácil. Há esforço, há fraqueza, há mergulho nas próprias sombras para encontrar leveza. O corpo tem sabedoria própria, sabe pelo sabor, experimenta com corpointeiro algo isolado no abissal de suas sensações que se escapa de si. Este possui caminhos que não deixam rastros, ativa seus próprios agentes despovoadores.

O impacto dos vinte mil litros de água já não afogava mais. Não me defendia. Me entregava. A dor que mobilizava a pele e os órgãos foi dissipada em força exaustiva. O corpo se entregou ao chão, sem esforço, sem força. Alguém me levantou, conduziu minha carne até o banheiro do museu. Me olhei no espelho, não reconheci o reflexo. Vi apenas uma carcaça refletida. O corpo abandonou o organismo revelado pela carne que escorreu junto às ultimas gotas que caíram da mangueira do caminhão-pipa. Não me reconheci, já não estava lá. Havia uma forma refletida no espelho que não era a minha. O vazio. As sensações se compõem com o vazio? Ou seria o vazio ser de sensação? Retornei à forma ulterior de ovo, sem vetores, nem direções, nem ossos, nem estratos, onde a forma não importa e o saber não tem mais fôlego. Um mergulho no ovo, lugar possível de onde nasce a vida inorgânica, rompendo a frágil casca do organismo. Deslimites do vago.

início
Cadente Ascenção
Clarissa Paiva

Clarissa Paiva é artista plástica brasiliense, formada pela Universidade de Brasília. Já participou de várias exposições e mostras em Brasília, atualmente produz e leciona em seu ateliê na asa norte.

Cadente Ascenção

Internos tortuosos entornos, e a imensidão neurológica. Estamos à deriva, um ponto minúsculo na Via Láctea, à deriva na imensidão, visível apenas pela dissociação.

Quando eu era criança, eu queria ser um astronauta. Queria não, ainda quero. O espaço me fascina, o universo me instiga e as possibilidades infinitas me comovem mais ainda do que a liberdade de expressão artística. Suas qualidades místicas, energéticas, mutáveis, generosas, grotescas, são incrivelmente poéticas, nos mostram como somos ignorantes e rasos, como as nossas maiores criações não são páreos para os multi universos, as matérias escuras, as partículas de deus.

Tudo isso parece distante de nós, mas a verdade é que estamos inseridos no meio dessa criação divina que é o nosso universo. Aliás, no meio ou nas periferias? É no meio pois ainda é infinito, mas nas periferias por conta da na nossa pouca idade? Para quatorze bilhões de anos, uma vida humana, até uma bem vivida, não é absolutamente nada. Será que por isso temos que voltar tantas vezes?

Queria ser astronauta, mas posso esperar até as próximas reencarnações.



início
Na cadência do medo ou declaração de amor ao chão
Sara Freire

Sara Freire é escritora e ativista, graduada em Ciência Politica e com mestrado em Literatura. Seu saturno em libra impede — há diversas rotações do ego em torno de seu sol também libriano — que ela finalize seu primeiro romance sobre a crise da masculinidade. Enquanto isso, ela se dedica, tricotando, a um dia aprender a tocar sanfona. Sara também é cofunfadora do Eu Corpo.existo, coletivo feminista do facebook, e uma das diretoras da IMBRADIVA e.V. — Iniciativa de Mulheres Brasileiras contra Discriminação e Violência — em Frankfurt am Main.

Na cadência do medo ou declaração de amor ao chão

Por que tanto medo de ir até o chão? Se estrelas cadentes se jogam no chão; folhas abraçam o chão; chuva se deita no chão; neve beija o chão.

Semente brota no chão. Árvores não largam o chão.

A perspectiva do chão é uma das mais lindas que há. Do chão, tudo parece grandioso. Do chão, o céu é redondo. Do chão, o mundo gira à sua volta. O chão tem um quê de mágico. No chão e do chão, a arrogância hierárquica perde seu sentido.

Por que tanto medo de descer até o chão? Se tudo que é grande e de valor vem do chão. Tudo que é grande honra o chão.

Por que tanto medo de cair? Se cair é a primeira lição para aprender a andar.

Por que tanto medo? Cair é preciso para levantar.

Por que tanto medo do chão? Se do chão não passa.

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conto os dias pelas calcinhas
Mayra Revolutionaif

Mayra Revolutionaif é artista social. Depois de passear pela UnB, constrói e reflete arte com crianças desde 2005. É idealizadora e realizadora do Projeto Lacuna - mostras de videoarte - que atualmente acontecem na Alfinete Galeria. Já investigou e contribuiu com os programas educativos de quase todos os museus e espaços culturais da cidade, sendo coordenadora do Programa Educativo Gente Arteira, na Caixa Cultural, em seus melhores anos (2011 e 2012). Atualmente é professora de Artes Visuais na Escola Parque da 210/11 norte, onde elabora com seus estudantes um enorme painel sobre a Via Láctea.

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conto os dias pelas calcinhas

O trabalho conto os dias pelas calcinhas ficou exposto nesse site temporariamente, entre dezembro de 2016 e abril de 2020.

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sem título
Clarice Gonçalves

Nascida em 1985, graduada em artes visuais pela Universidade de Brasília em 2008. Vem realizando exposições em território nacional desde 2004, participa esporadicamente de feiras em SP (PARTE), e já teve algumas experiências em exposições coletivas em Nova Iorque e Londres, em 2011 foi sua primeira mostra individual em São Paulo, 2013 o ano que nasceu seu filho, 2014 lançou um livro de 200 paginas com textos de Graça Ramos, Juliana Monachesi e Mario Gioia, no final deste mesmo ano participou da mostra ´figura humana´, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, com curadoria de Raphael Fonseca. Atualmente se recupera do puerpério e produz para uma possível exposição em São Paulo e outra em Brasilia.

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Harmonia doméstica. Óleo sobre tela. 2009. 70 x 40cm.

Hoje ao parar o carro para abastecer reparei na bomba de gasolina à minha frente um sujeito excêntrico, quase assustador. Fazia calor e ele trajava denso uniforme cor cáqui com colete à prova de balas, protetores nos antebraços e pernas, duas armas gigantes em cada lado do quadril e, como estava de moto, um capacete maior do que os normais, com a parte da frente completamente preta. Não fumê, preta, breu total.

As crianças comiam a pipoca que acabaram de ganhar do atendente e por um momento me senti num filme de ficção científica. As crianças, mesmo sem saber, também, eu acho.

Enquanto lhe enchiam o tanque cautelosamente e de forma rápida ele (suponho) passou os olhos por todo o posto antes de levantar a viseira do capacete.

Eu não podia me conter de tanta estupefação. Por baixo do capacete havia ainda uma balaclava, só seus olhos estavam expostos. Com pesadas botas e, se não me engano, luvas, num vislumbre veloz ele olhou nos meus olhos (a essa altura certamente havia percebido que eu o estava observando com curiosidade), dentro do mesmo vislumbre olhou para as crianças dentro do meu carro, e se foi a fazer o pagamento.

Olhar aqueles olhos por milésimos de segundo me foi suficiente para, de minha forma, adentrar-lhe a existência, hipoteticamente.

Vi tanta tensão naquele olhar, não me lembro de ter visto olhos assim antes. Me perguntei por que ele vasculhou meu carro pelos rostos das crianças, imaginei de que ele estaria à procura, o vi tremendamente treinado para algo que eu jamais faria ideia.

Não era um policial comum que até tira onda de autoridade. Aquela figura-entidade tinha uma espécie de vidência para o que quer que ele estivesse buscando, e quando me dei conta disso imaginei que no mesmo relance ele já poderia ter memorizado a placa do meu carro, ou mais, já poderia ter feito uma leitura quase semiológica de minha vida e tê-la arquivado ou deletado como insuspeito.

Imaginei quantos rostos ele tinha em sua provável memória fotográfica, quantos rostos decorados de pessoas desaparecidas, criminosos e afins.

Eu aprendi algo de observá-lo. Imaginei quanto sofrimento e violência aqueles olhos viram. Vi dor, também. Mas sobretudo a missão quiçá heroica para a qual ele existia.

Mas não consegui vê-lo quando não está nesse personagem.

Tinha uma presença quase transcendente, diria. Uma transcendência oposta.